Chovia lá fora.
Primeiro capítulo de um livro que comecei a escrever e nunca terminei. Meados de 2019/2020
Chovia lá fora. E isso sempre fora algo que o incomadava. Ele nem sabia o porquê, somente sabia que o incomodava. Sentado à mesa de um pequeno estabelecimento ele permanecia com seu copo quase vazio à mão, como se estivesse a esperar por alguém. Um alguém que nunca chega. Pela sua expressão, os não muitos vizinhos de mesa poderiam deduzir que já estava cansado de esperar. Sua barba grisalha com fios negros remanescentes escondia o seu queixo pontudo, que desde criança aprendera a não gostar. E a barba na fase adulta foi um presente gentil da genética que o ajudou a não ter que se preocupar com isso ao se olhar no espelho ou ao perceber que outros estavam lhe encarando.
O local em questão era simples e modesto. Todo decorado com móveis de madeira, bandeiras de times nas paredes e quadros com recortes de jornal. O boteco que ficava localizado no centro da cidade era seu lugar favorito desde a juventude quando costumava frequentá-lo com seus amigos. Bons tempos, costumava pensar sempre que passava ali. O boteco permanecera, seus amigos não. Ele, junto com o local e as memórias, também permanecia. Sempre que pensava sobre a finitude das coisas, como tudo vem e vai, dos seus amigos, ela... Pensava sobre como ele não passara, pelo menos não para si mesmo, e achava injusto ainda ter ficado enquanto todo mundo, assim como a sombra que declina, se fora.
Os seus olhos cansados refletiam uma idade que ele não tinha; sempre parecera ser bem mais velho do que realmente o era, mas isso nunca o incomodou, afinal, ele sempre gostou da ideia de ser um velho em um corpo jovem. Hoje ele era finalmente um velho em um corpo velho, não tão velho assim, mas ao menos, mais velho do já fora anteriormente. Finalmente estava chegando na melhor fase da vida, pensava.
O atendente que o vira entrar há uns 15 minutos e havia lhe servido com sua cerveja favorita novamente se aproxima de sua mesa enchendo o copo quase vazio.
- Seu Levi, você vai querer as batatas agora ou vai esperar mais um pouco? – Perguntou o jovem sorrindo enquanto tirava o isqueiro de seu bolso e acendia o cachimbo do velho à sua frente. Ele era alto e magro, e sempre que via o senhorzinho entrando fazia questão de lhe atender. Levi gostava quando o chamavam de “seu”, “senhor” ou qualquer outro tratamento que o lembrava que ele estava envelhecendo, que ele também de alguma estava passando. – Pelo visto o chefe vai fechar mais cedo. Plena quinta-feira com esse pé d’água, é bem provável que o movimento fique assim até o fim da noite.
Ao ouvir o comentário do jovem abriu um leve sorriso e, enquanto soltava a fumaça de seu cachimbo, responde:
- Eu poderia dizer que em minha época a chuva era mais forte; mas estaria mentindo – puxou mais um trago e soltou - eu raramente paro para observar a chuva, então irei acreditar que a de hoje é realmente mais forte que as de ontem.
- É bom acreditar mesmo, fiquei todo encharcado vindo a pé para o trabalho. Essas chuvas de verão são realmente imprevisíveis. O senhor vai querer alguma coisa agora? – O velho o dispensou com a mão e o jovem logo se dirigiu a outra mesa a fim de atender um outro cliente.
O boteco estava vazio, um pouco mais vazio do que nas quintas anteriores. Deve ser a chuva, ele já havia pensado. Desde que voltara para a cidade essa era a primeira vez que chovia numa quinta-feira. E dessa vez, diferente das outras vindas ao seu lugar favorito na cidade, o som da chuva fazia companhia ao som de seus pensamentos. Um ruído a mais para lidar. Em meio aos ventos de pensamento percebeu que seus olhos estava se fechando, o cansaço de um dia de trabalho somado a uma noite mal dormida. Se ajeitou na cadeira e voltou a fitar a porta, como quem espera ansiosamente por alguém a chegar. Algo no fundo lhe dizia que isso não iria acontecer; mas nunca se sabe na volta que as coisas podem dar.
Levi era escritor. Não sou renomado, nem conhecido, nem tampouco relevante, isso era o que gostava de dizer quando as pessoas o chamavam para entrevistas e perguntavam como ele se sentia em ter vendido alguns milhares de livros. Embora ele não gostasse, ele era o que chamaríamos de um: Escritor de Sucesso. Havia entrevistas dele, livros, artigos e até os “fãs”, objeto de desejo daqueles que não sabem o que é a vida, dizia para si, constumavam perturbar-lhe a paz nas caixas de e-mails não lidos. Embora ele tentasse sempre passar o ar de indiferente quanto a tudo aquilo, ele era muito agradecido por todo o carinho, consideração e amor que recebia das pessoas. E mais ainda, por comprarem suas obras; assim as contas ficavam em dia e era menos uma coisa para se preocupar. Ele gostava do seu trabalho, mas isso não mudava o fato de que era um trabalho. Ou seja, de que na maior parte do tempo ele gostaria de estar fazendo qualquer outra coisa, mas afim de não procrastinar (algo que era especialista em fazer) se disciplinou a ponto de escrever 2000 palavras por dia; sejam elas boas ou não, gostando delas ou não, fazendo chuva ou não.
Desde que voltara para a cidade estava se dedicando a escrever colunas semanais para o jornal local. Ele sabia que não precisava fazê-lo, já que seus últimos livros vendiam bem e já estavam sendo planejadas novas edições, mas ele gostava de sempre estar produzindo algo. Havia decidido voltar para a cidade no calor do momento, numa súbita ideia maluca, e antes mesmo desse calor se apagar, aceitou a oferta de escrever para o jornal. Quando se cansasse era somente dizer que se cansou e poderia fazer outra coisa. Já não sentia a necessidade de ficar pensando de mais nas coisas, somente as fazia; as vezes isso resultava em coisas boas, as vezes não. O fato de você planejar não impede as coisas ruins de acontecer, certo? Das duas formas, eu não possuo controle de absolutamente nada; sendo assim, que se exploda tudo então. Ele sabia que sua mãe não ficaria nada feliz com esse tipo de pensamento, já que desde pequeno havia sido ensinado a sempre planejar, pensar e tomar as melhores decisões. Mas o fato era que ela também se fora e não havia nada que ele pudesse fazer para mudar isso. Tomar decisões no calor do momento parecia ser a melhor forma de viver naquele momento de sua vida. E se não fosse mais a melhor forma, era somente mudar de ideia.
Mesmo se optasse por planejar melhor as coisas ele sabia que inevitavelmente ele estaria ali. Talvez ele teria demorado mais para escolher sua roupa, ou não estaria ali numa quinta-feira, ainda mais numa quinta chuvosa. Quem sabe ele não teria nem saído de casa. Mas ele estaria ali, ou em qualquer outro bar, esperando. Independente do rumo que tomou, da carreira que seguiu, das mulheres com quem se relacionou, dos países em que morou; das pequenas alegrias e grandes tristezas que teve, das perdas e dos ganhos, isso era algo que com ele permanecia e nunca mudara nem por um momento: ele ainda esperava. Ele tinha uma leve percepção de que independente do que fizesse, as coisas iriam acontecer, queira ele ou não. Talvez o máximo que seu ‘livre-arbítrio’ lhe permitiria escolher seria como ele se sentiria mediante a tudo o que vai acontecer. Era como ele gostava de pensar, embora também tivesse a ciência de que as coisas não eram tão preto no branco assim e que um mero ser como ele não iria conseguir esgotar totalmente o paradoxo mental acerca daquilo. Ao menos isso me ajuda a lidar com minha realidade.
Sua mente, que não vagava em reflexões profundas, foi interrompida pelo jovem de antes com uma garrafa de cerveja e as batatas nas mãos.
- Ta na mão, chefe. Trincando como o senhor gosta – disse ele enchendo o copo que o escritor a sua frente esvaziara entre um pensamento e outro, e colocando as batatas sob a mesa
- Você já teve a sensação de que ficou pra trás? – perguntou o velho deixando com uma cara de quem não entendeu a pergunta súbita. Levi percebeu e sorriu.
- Ah, eu acho que sim. Quando eu terminei a escola parecia que todos já estavam fazendo algo e eu ainda não, meio que todos estavam se encaminhando para seus futuros e somente eu fiquei preso no aqui e agora. – respondeu o menino ainda sem saber se havia dado a resposta certa. Haveria uma resposta certa? Questionou-se.
- É quase isso, mas não é. Eu senti isso também quando eu saí da escola. É horrível. Só não tão horrível quanto o que pode vir depois.
- Mas então sobre o que você está dizendo? – perguntou o menino de volta. Levi sorriu e ficou por um momento em silêncio pegando as batatas e molhando no pote de ketchup enquanto o jovem ficava parado ao lado da mesa o olhando. Não havia clientes para serem atendidos, então ele poderia se dar ao luxo de acompanhar o velho em uma prosa. Desde que ele começara a vir no bar às quinta-feira, sempre pegava o tempo restante do expediente para conversar com ele. Algo nele o atraia. Talvez fosse a cara de doido que aquela barba por fazer expressava, ou pelos óculos redondos que ele sempre chegava usando, mas que na hora de comer fazia questão de colocá-lo no bolso da camisa, ou até mesmo a mania que ele tinha de sempre ter algo a dizer sobre tudo; isso em particular o irritava um pouco, mas ainda assim, mesmo sem saber o porquê, gostava de passar um tempo com ele.
- Você gosta de histórias, Cadu? - O rapaz se apresentara com o apelido na primeira vez que se encontraram. Desde então ele vem se perguntando qual seria realmente o nome do jovem rapaz, embora tenha uma leve impressão de que seja Carlos Eduardo. Não faz tanta diferença assim, faz?
- Pois bem. Em um lugar que não importa, num tempo que ninguém faz questão de mencionar havia um palhaço de rua. Um daqueles não tão talentoso, mas que ainda assim, se esforça dia e noite para trazer sustento para o lar. Ele morava numa pequena casa com sua mãe que estava doente. A casa era simples, modesta, quase sem mobília; um casebre de madeira. Com vários problemas, claro, alguns buracos no telhado e cupins em alguns cantos, mas ainda assim, o seu casebre de madeira. Obviamente ao chegar ao lar, ele se despia de sua roupa de palhaço e cuidava de sua mãe. Ele a amava e sabia que ela o amava também, embora nesse momento de sua vida ela mal conseguia lhe dirigir a palavra. A situação era difícil, mas ali ele estava com sua mãe e o casebre. E assim foi, dia noite, sol e chuva, dia e noite, sol e chuva. Sempre ele, sua mãe e o pequeno casebre aguentando dia e noite, sol e chuva.
O jovem rapaz, pego deprevenido por uma história, não sabia bem o que fazer. Precisava voltar ao trabalho, embora parte dele também quisesse ficar para ouvir. Sem ter tempo para reação Levi continuou a falar
- O seu ofício como palhaço de rua não lhe pagava o suficiente, já que ele dependia de suas habilidades e da generosidade das pessoas. Como se sabe, ele não era tão bom. E como sabemos as pessoas não são sempre tão generosas assim. Mas ele continuava, sempre continuava, afinal, ele não podia parar. “Quem vai sustentar o lar?”, “Quem vai cuidar de minha mãe”, dizia a si mesmo. A verdade é que ele, assim como todos, aguardava a sua única certeza: a morte. Esperava pelo momento em que toda aquela angústia acabaria. Embora soubesse da existência de sentimentos como o amor, a alegria e a esperança, sentia que aquilo era algo reservado somente para alguns, pois já não lembrava mais quando fora a última vez que se levantou com o leve sentimento de querer vivenciar aquele dia. Todos os dias eram um fardo, dia e noite, sol e chuva; para ele parecia mais ser noite e chuva há um bom tempo. Sua mãe doente ia piorando a cada dia. Até que no inverno de um ano qualquer, ela morreu. Ao mesmo tempo que isso lhe atravessou seu peito como uma faca gélida, também lhe aliviou o coração. No mesmo dia ele limpou sua casa, ajeitou suas coisas, arrumou-se com o melhor trapo que conseguira encontrar e saiu. Saiu e não voltou.
O silênciou encontrou casa e o jovem parecia estar aguardando o final. Ao mesmo tempo o cérebro do rapaz estava fazendo todo o esforço possível para conseguir compreender o que o velho Levi estava dizendo caso aquele fosse o final. Sem sucesso ele perguntou:
- Ta, eu não sei se entendi bem a questão aqui. – Coçou a cabeça e encarou o senhorzinho à sua frente que sorria ao observar a confusão do menino. Olhando assim, ele não parece ser tão velho.
- Talvez esse seja o típico caso de alguém que não sabe contar muito bem a história. – Riu e se inclinou um pouco sobre a mesa – Veja bem, de um jeito ou de outro, todos vão partir. Seja por conta da morte, seja por conta da vida; inevitavelmente a partida é algo que vai acontecer. Partimos às vezes porque nos deixaram pra trás, como foi o caso do palhaço. Ou partimos e deixamos alguém para trás.
Cadu ficou reflexivo tentando utilizar disso para ver se conseguia entender melhor a história. Ele não entendia muito bem por que os velhos costumavam a utilizar-se de supostos enigmas para falar algumas coisas. Levi quando mais jovem também não entendia, mas agora que estava mais velho, e depois de escrever alguns livros via que há algumas coisas que, se ditas de uma forma direta, perdem toda a sua importância e relevância. Enquanto puxava um trago de seu charuto ele olhava atentamente para o menino esperando ansioso pela resposta.
- Então, você é o palhaço? Ou melhor, na vida nós somos o palhaço? – perguntou o menino como alguém que conseguia encontrar uma certa lógica em sua suposição. Já tivera conversas semelhantes antes e sabia que alguma moral deveria existir – Como o palhaço da história, às vezes pessoas que amamos se vão, seja ela parente ou não, e nessa partida nós ficamos. Mas a dor da partida nos impele a também sairmos de onde estamos e partirmos. Que foi o que aconteceu com o palhaço. Ele estava “preso” com sua mãe ali, e quando ela partiu, embora tenha doído, ele teve a oportunidade de também partir. Claro, embora em outro sentido e tal. É isso?
Ele mesmo ao dar a resposta ficou impressionado em ter dito aquilo. E acreditava que era esse tipo de resposta que o senhor à sua frente queria. Para ele fazia muito sentido por inúmeros fatores, já que recentemente havia terminado com sua namorada e ele era o palhaço que ficou. Pensou que talvez ele estivesse lhe dizendo para lidar com a partida e partir. Mas como ele sabe sobre o término? Ao olhar o rosto de Levi entendeu que sua resposta estava errada. Anos de experiência como contador de histórias fez o velho desenvolver uma sutil habilidade de levar você a crer que ele espera um tipo de resposta quando na realidade ele sempre quer te mostrar algo oculto. “Não é essa a função dos escritores?” escreveu ele em um de seus livros. Não é que a resposta esteja errada, mas somente que não era nessas exatas palavras que ele gostaria de dizer.
- Eu já fui o palhaço – disse ele – acho que inevitavelmente todos seremos de alguma forma. Lidamos com a dor da partida partindo. Essa parece ser uma bela solução para conseguirmos lidar com a dor. E de muitas formas é. A liberdade que o palhaço encontra ao conseguir sair é algo que muitos de nós buscamos. Isso não significa que o palhaço ficou feliz ou que finalmente conseguiu se estabilizar, mas sim que ele poderia tentar sem que nada o amarrasse. Porque o que o amarrava partiu. A triste verdade difícil de observar é que muita das vezes não conseguimos partir. E ficamos.
Ele parou por um momento. Não é que as palavras lhe faltavam, mas somente parou. Como se sempre que chegava nessa parte da fala houvesse uma pausa de ênfase, mas para ele era somente a pausa para uma reflexão. Ao contar histórias, até mesmo aquelas antigas, nós revivemos tudo de novo. Às vezes numa escala menor, às vezes numa escala maior. Essa era daquelas que precisavam de uma pausa. O jovem não entendia isso muito bem e novamente acreditou ele ter terminado.
- Então se você não é mais o palhaço, quem é você nessa história? – interrompeu sem saber o fluxo de pensamentos e memórias do velho Levi. O que para o escritor a sua frente foi um alívio.
Ele suspirou. E como quem contava aquela história para si em sua mente inúmeras vezes respondeu:
- Eu sou o casebre que fica para trás quando todos se vão – pegou seu caneco, terminou o gole e antes mesmo que o menino pudesse refletir ou lhe responder lhe disse – agora vai lá dentro e pega mais uma garrafa pra mim, pode ser?


